Para quem imaginava que fantasias do marketing político de João Doria estariam limitadas ao período de campanha eleitoral, o que seria compreensível pelo baixo padrão instituído no sistema eleitoral em vigor no Brasil e na maioria dos países, o primeiro dia do mandato do novo prefeito de São Paulo encarregou-se de mostrar o contrário.
Ao fantasiar-se de gari tentando fingir — em companhia dos secretários — que limpava uma praça que já fora varrida na véspera por funcionários de limpeza pública, Dória evoluiu em seu disfarce de personagem da sociedade do espetáculo. Depois de apresentar-se como não-político durante a campanha, deu um passo além e assumiu um trabalho como ator, profissional treinado para fingir ser o que não é. Com a roupa esverdeada, o prefeito ilustra uma cena que tanto ele como o eleitorado sabem que é pura ficção. Sequer tenta enganar. É falso de ponta a ponta.
Não vamos nos iludir. Pelo caráter anacrônico, previsível, o comportamento mal consegue provocar risinhos cúmplices de comentaristas interessados em dar musculatura ao prefeito de São Paulo. Na verdade, tamanha ênfase no espetáculo — a compreensão dos jornalistas é essencial para confortar quem pode achar o comportamento estranho e até escandaloso — apenas confirma a ausência de projetos reais, capazes de beneficiar a maioria da população.
Não poderia haver desrespeito maior em relação a valores e necessidades da população de São Paulo, que Dória tem a obrigação de respeitar e defender seriamente, sem risinhos, até porque as possibilidades de um fiasco retumbante são enormes.
Para começar, eu acho que o trabalho de gari, uma função essencial para a vida de todos e cada um dos paulistanos, é uma atividade que merece respeito de quem nunca foi encarregado de apanhar uma vassoura para fazer o serviço de limpeza — em casa, na rua, em todo lugar.
Ao se dar o direito de fingir que fazia um trabalho útil e necessário como qualquer outro, Dória deixou escancarada uma mensagem de desprezo pelas expectativas de milhões cidadãos que necessitam de seus serviços. Tratou como brincadeira de playboy uma questão que envolve o dinheiro arrancados do bolso de moradores e sua famílias, alvo de cobiça de interesses gigantescos e cabeludos, motivo de denúncias de corrupção em quase todas administrações.
Confirmando a condição de farsa e fraude, o prefeito-gari é apenas um novo figurino no armário de Dória ao longo de uma ascensão política construída com auxílio de uma mitologia conhecida. Em campanha, apresentou-se como um não-político, o que já era uma forma grosseira de pescar votos nas águas turvas da criminalização e desencanto com a atividade política. Filho de um deputado federal do velho PDC, o partido de Jânio Quadros, Carvalho Pinto e Plínio de Arruda Sampaio, em 1986, antes de completar 30 anos de idade Dória já conseguia um emprego valioso de presidente da Embratur, a estatal de turismo. O cargo federal foi fruto de uma clássica negociação entre caciques da Nova República, o governador Franco Montoro, que também pertenceu ao PDC, e o presidente José Sarney. Mais tarde, o futuro prefeito montou sua empresa privada, especializada em promover eventos num paraíso reservado do litoral da Bahia onde empresários com dificuldades podiam negociar facilidades com ministros, secretários e autoridades em geral. Nada político, vamos combinar.
Padrinho da candidatura do novo prefeito, capaz de enfrentar caciques de primeira linha do PSDB para impor o nome de um novato em disputas eleitorais, entre 2014 e 2015 Geraldo Alckmin despejou uma verba de R$ 1,5 milhão extraída do governo paulista para pagar publicidade em revistas de baixa tiragem do próprio Dória, ajudando a engordar o cofre de onde saíram, mais tarde, as maiores verbas da campanha de 2016. A publicidade de Alckmin não foi a única verba política para o não-político. Segundo levantamento da Folha de S. Paulo, entre 2010 e 2016, dez governadores do PSDB despacharam R$ 10,1 milhões para os cofres do empresário-candidato. Com esse dinheiro, o prefeito-gari pagou a campanha de nove vereadores que fazem parte de sua bancada na Câmara. Com verbas fartas num período de vacas magérrimas, o empresário que nunca produziu um parafuso, terá uma relação de patrão-empregado com uma fatia decisiva da Câmara. Num país onde se costuma denunciar a montagem de alianças políticas como compra à prazo de votos no legislativo, o prefeito-gari pagou à vista.
A comparação correta com Jânio Quadros ajuda a sublinhar o caráter regressivo do padrão político que o novo prefeito tentará implantar na maior cidade brasileira. Vitorioso num ambiente político artificial, criado pela “encenação” que derrubou Dilma Rousseff e abriu caminho para um estado de exceção, o prefeito-gari é menos estável do que parece.
Disposto a permitir a exploração até de cemitérios, área reservada para o culto dos antepassados em toda civilização um pouquinho mais desenvolvida, inclusive nossos indígenas pré-Cabral, o gari de segunda-feira levou para a prefeitura compromissos que será obrigado a saldar, cedo ou tarde, jogando a conta para a maioria da população, em particular os mais pobres.
Obrigado a esconder um aumento de até 37,5% nas tarifas de integração e bilhete único, que questionam uma das heranças fundamentais da gestão de Fernando Haddad — a melhoria reconhecida no transporte coletivo — o prefeito-gari não tem opção além de proteger os ganhos e o padrão dos mais ricos. Daí, a importância do bufão da vassoura.
Atrasos como Dória podem acontecer na vida de qualquer país. Depois do massacre de várias gerações que fizeram a luta política pela democratização confirma-se que o anunciado homem-novo saído das urnas de 2016 não passa de um velho Jânio, produto de um país no qual 57% das pessoas adultas não sabiam ler nem escrever corretamente. Hoje, o IBGE informa que esse número segue importante — perto de 10% — mas foi reduzido. Voltamos a isso.