Europa: o continente que inaugurou o crime contra a humanidade
O über-historiador Eric Hobsbawm, no seu clássico “A era dos extremos”, afirma que antes do século XX os mortos eram contados às dezenas, às vezes às centenas, raramente aos milhares, mas nunca aos milhões.
Com o raciocínio acima posto, Hobsbawm partia para a descrição do século XX como, de longe, o século mais assassino de toda a história humana. E Hobsbawm está corretíssimo acerca do pendor genocida do século anterior, porém ele deixou passar que ainda no século XIX um país europeu foi responsável por exterminar mais de um milhão de pessoas; na verdade as cifras obscenas falam em algo em torno de 10 milhões de mortos. E, mais, que a responsabilidade sobre este crime pode ser atribuída diretamente a uma única pessoa: o rei Leopoldo II da Bélgica. Primo primeiro de outra criminosa de letra maior, a rainha Vitória, a responsabilidade pelos atos de Leopoldo II ainda não foi devidamente assimilada.
Tendo tomado a bacia do Congo como propriedade particular, e não apenas como colônia da Bélgica, o rei Leopoldo II foi o maior proprietário de terras da história humana, possuindo um território mais de 70 vezes o tamanho da Bélgica. Ali Leopoldo II impôs um estado atroz de exploração sobre os nativos, em que congoleses que não alcançavam a meta de produção tinham as mãos decepadas como castigo ou então as mãos de seus entes queridos. Esta se tornou uma prática largamente empregada no Congo Belga e espalhou-se por toda a África como método de punição – até nossos dias.
Ao visitar o Congo Belga junto com o marido, em fins do século XIX, a missionária inglesa Alice Seeley Harris ficou absolutamente estarrecida com o que viu. Levava consigo uma máquina fotográfica e realizou os primeiros registros fotográficos de um crime contra a humanidade. Alice elaborou detalhadas descrições acerca da condição do Congo, denunciando os crimes do colonialismo Belga e despachando à Europa seus relatórios.
A revelação do genocídio no Congo Belga inspirou o escritor Joseph Conrad a compor o romance “O coração das trevas”, a mais importante obra literária anticolonial. A trama gira em torno de Kurtz, um próspero comerciante de marfim que teoricamente enlouquece no Congo e decide partir para o coração da selva, onde monta uma comunidade autossuficiente de colonizadores dissidentes e de nativos vivendo em harmonia. É missão dos colonizadores encontrar esta comunidade, destruí-la e assassinar Kurtz. Cercado de atrocidades, Kurtz, antes de cair morto, pronuncia algo que se tornou a síntese perversa de toda a monstruosidade do colonialismo europeu e da guerra perpetrada pelo homem branco contra outros povos: “O horror! O horror!”
“O coração das trevas” foi brilhantemente adaptado ao cinema por Francis Ford Coppola em “Apocalypse now” (1979). Porém Coppola transferiu as ações da África para o Ásia, do Congo para o Vietnã, dos nativos do Congo para os vietcongs.
É dever de todos que vão à Bélgica questionarem os belgas que encontrarem o que eles já fizeram pela África, especialmente pelo Congo. Todos que vão à Bélgica devem se perguntar, antes do deslumbre, quanto custou o progresso daquela nação. A infelicidade, a miséria, a destruição completa de quantas gentes? De quantos povos? O custo humano para o desenvolvimento da Bélgica via acumulação primitiva de capital foi maior do que a soma da população da Bélgica hoje.
A Grand-Place de Bruxelas é magnífica? Porém tem o mesmo cheiro de sangue de Auschwitz. E, sem a técnica nazista, sem as fábricas de morte, sem a eficiência dos meios de execução da SS, os belgas exterminaram mais seres humanos que o próprio Hitler.
Reparação não é favor, não é caridade, é justiça.
Jornal A Voz de Araxá – Akira Riber Junoro