Pessoas de diferentes classes cometem os mesmos crimes, mas recebem tratamentos diferentes. Basta um menor pobre roubar um celular e amarram-no a um poste, agridem e frequentemente o matam. Um jogador de futebol que sonegou milhões foi até saudado por fãs em seu julgamento
Neymar e o pai saindo da Audiência Nacional de Madri (reprodução)
Seja o trecho que destacava “O craque chegou às 13h50 (de Brasília) e recebeu apoio dos fãs” (1) ou o título da notícia que dizia que “Neymar deixa tribunal calado, mas tira fotos com fãs” (2). Tudo estaria normal se o jogador do Barcelona não tivesse sido investigado por sonegação fiscal e falsidade ideológica (3) – o MPF diz que Neymar falsificou ao menos 15 contratos (4).
Não quero aqui discutir se o camisa 10 da seleção é ou não é culpado, se ele realmente sonegou esses milhões que estão falando. O que queria era atentar para um fato: uma pessoa sendo julgada por crimes graves (principalmente se falarmos sobre o peso econômico) sendo saudada por fãs em seu julgamento. Aliás, o jogador ganhou bons minutos para prestar sua defesa em rede nacional no horário mais nobre da emissora mais assistida. Se ele é culpado ou não, não é tarefa minha descobrir nem julgar – muito menos antes da própria (in)justiça fazer isso -, mas é curioso uma pessoa ser julgada por crimes com penas de até 5 anos e receber todo esse “carinho”.
Não estou dizendo que pessoas julgadas – ou até condenadas – por crimes devam receber tortura ou algo do tipo, muito pelo contrário. O que essa polêmica com o Neymar causou em mim foi exatamente o questionamento sobre a diferença de tratamento entre os diferentes criminosos. Sem entrar nas discussões de Direito Penal e suas derivações, as palavras “sonegar” (5) e “roubar” (6) têm, dentre suas várias definições, muitas caracterizações em comum de acordo com o Dicionário Priberam. Então por que estamos amando os primeiros e odiando – quase sempre – os segundos?
Recentemente viralizou nas redes sociais algumas imagens que retratavam como os meios de comunicação diferenciam crimes cometidos por pessoas pobres e por pessoas de classe média. O primeiro exemplo foi postado pelo G1 com o título “Polícia prende jovens de classe média com 300kg de maconha no Rio” (7). No entanto, exatamente 10 dias antes o mesmo G1 publicou uma outra notícia com o título “Polícia prende traficante com 10 quilos de maconha em Fortaleza” (8). Qual a diferença entre os dois? Quem trafica 300kg não é chamado de traficante, mas quem trafica 10kg é? Por que insistimos em diferenciar colocando os pobres como bandidos e os de classe média como “jovens de classe média”? Outro exemplo claro pode ser visto na seguinte notícia: “Suspeito de tráfico de Ipanema vendia droga para ‘alta sociedade’, diz polícia” (9). Repararam na palavra “suspeito”? E olha que ele já tinha sido preso exatamente por tráfico 5 anos antes, mas por ser de classe média, foi noticiado como suspeito. Já uma outra notícia intitulada “Polícia prende traficantes que agiam à luz do dia na Lapa” (10) fala de 11 pessoas – todos jovens negros – presos. Novamente as duas notícias tratam do mesmo tipo de crime, só que um – “coincidentemente” morador de Ipanema – é chamado de suspeito mesmo tendo antecedentes e outros – “coincidentemente” pobres e negros – chamados de traficantes.
Não estou questionando se devem ou não ser presos, se a maconha deveria ser legalizada ou se sonegação é uma forma de protesto contra o governo (sim, em meio às manifestações para o impeachment, cartazes com esses dizeres – e outras tantas loucuras – foram exibidos). O que quero trazer é: pessoas de diferentes classes cometendo os mesmos crimes recebendo tratamentos diferentes. Basta um menor pobre roubar um celular e amarram-no a um poste, agridem e frequentemente o matam. Um jogador de futebol sonega milhões – vale muito mais que um celular, não? – e é saudado por fãs em seu julgamento.
Por que nos revoltamos absurdamente com pequenos roubos feitos por menores pobres (quase sempre em estado de rua) e fingimos não ver rombos milionários de alguns políticos? Um menor negro, armado e vendendo drogas à varejo pode ser capa de jornal sobre a situação caótica do Rio de Janeiro, mas o helicóptero de um senador do PSDB com 450kg de cocaína não incomoda. Um médico esfaqueado num bairro nobre do Rio de Janeiro vira comoção nacional, mas o filho de um dos empresários mais famosos do Brasil após matar um ciclista ao dirigir acima do limite de velocidade não causa indignação (muito pelo contrário, o assassino ainda foi absolvido).
Não quero dizer que jovens negros pobres não devam ser presos por crimes, o que não podemos aceitar é essa diferenciação. Se os meios de comunicação são um reflexo da população, não importa aqui, o que não podemos é continuar com o estereótipo de bandido o qual sempre inclui pessoas pobres (em sua maioria negras) que roubam celulares e vendem alguns quilos de drogas enquanto isenta os jovens de classe média com toneladas e até algumas celebridades quando deixam de pagar fortunas aos cofres públicos, são pegos na Lei Seca ou constroem em áreas de Proteção Ambiental (e etc.).
Vejam então essa última notícia intitulada “Jovem morador de Copacabana é preso por roubo de carros” (11). O primeiro fato a ser reparado é uma pessoa que já foi presa várias vezes ser chamada de “jovem” por morar em Copacabana e não de ladrão ou definições do tipo. O mais chocante é que não para por aí. Até o presente momento, alguns comentários da notícia no site do G1 tratam-no como “coitado” ou que está “vivendo uma fase difícil” ou ainda que “ele não tem má índole […] tem que recuperar e dar força” (caso o leitor queira ver, provavelmente tais comentários ainda estarão lá). Lembrando que os moradores do mesmo bairro lincharam um menor negro de 12 anos acusado de roubo durante os protestos sobre o impeachment (12) e que quebraram alguns ônibus que ligavam Copacabana à Zona Norte em “protesto” contra os arrastões.
Enquanto um morador do bairro é tratado como coitado mesmo tendo tido várias passagens pela polícia, jovens negros são surrados e linchados por crimes bem menores– ou até por não cometerem nenhum crime, como no caso dos ônibus quebrados. As notícias retratadas não são casos isolados, o próprio leitor pode fazer a experiência de ir no Google e procurar por notícias e ver a diferença que os meios de comunicação fazem. Isso só acontece porque muita gente bate palma pra isso, muita gente legitima isso. Então vamos tratar todos esses fatos como “coincidência”? Quando vamos enxergar nossa parte nisso? É muito cômodo clamar por justiça enquanto se é parte da fonte de injustiça!
Enquanto a máxima do “bandido bom é bandido morto” segue legitimando o genocídio da população favelada, continuamos a ser seletivos com os tais bandidos de “classe média”. Coincidência? Não! Continuamos tratando Chico e Francisco de formas diferentes – como destaquei em artigo anterior (13) – e achamos uma coisa normal. Morte ao bandido pobre, aplausos ao bandido rico. Você pode até dizer que não, que pra você bandido é “tudo igual”, mas na prática o que você tá legitimando é exatamente o oposto: bandido branco de classe média é uma “fase ruim”, bandido preto pobre é linchamento, ou, como gostam de proclamar, “faca na caveira”. Vão dizer que não é racismo e nem preconceito de classe, então só pode ser cegueira. Cidadãos de bem no melhor estilo Ku Klux Klan.
Não é coincidência!
Saullo Diniz é graduando em Geografia pela UFRJ