Leia o artigo do médico Luis Marcos Ferreira Junior, neurologista da Unimed Araxá
Eu, menino criado no interior de Minas Gerais, aprendi desde cedo como o nome de algumas doenças pode ser estigmatizante e capaz de causar processos patológicos e biopsicossociais, gerando doenças por si só. Afinal, nunca tinha ouvido falar de “câncer”, mas apenas “daquela doença ruim” (frase que, mesmo omitindo o nome “câncer”, ainda era falada com a voz bem baixinha para “não atrair”). Câncer mesmo, quando falado de forma nua e crua, era um sinal de moribundez ou morte. Mau agouro.
Entrando na medicina, entretanto, percebemos que aquela doença causada em seu cerne pela perda da capacidade da regulação do crescimento celular, levando a uma multiplicação celular exagerada e danosa (a qual acabava por gerar problemas diretos e indiretos aos tecidos saudáveis) representava, na verdade, todo um espectro clínico de doenças, com diversos mecanismos próprios de surgimento e evolução, diversos sítios de ação e proliferação e diversos tratamentos possíveis. Entretanto, mesmo com toda essa diversidade de mecanismos, fenótipos clínicos e tratamentos, são vistas sempre com um estigma único pela população geral.
Na medicina, acabamos tendo contato com outras doenças com caráter estigmatizante também. A doença que vou falar hoje, uma doença que tem seu cerne justamente no extremo oposto do câncer, sendo o mecanismo patológico dela uma morte celular precipitada e acelerada de determinada população de células, só não possui um estigma pior do que o câncer devido a sua raridade, sendo uma doença com uma prevalência muito menor que o câncer.
A Doença do Neurônio Motor – mais conhecida pelo seu fenótipo mais comum e mais grave de Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA), é uma doença de caráter multifatorial, sendo influenciada por predisposição genética e por exposição a diversos fatores de risco ambientais, mas sendo determinada pelo tempo, sendo necessário que a predisposição associada aos fatores de risco aja conjuntamente por tempo suficiente para conseguirem desencadear a doença.
A partir deste momento, ocorre uma morte celular precipitada e acelerada dos neurônios motores inferiores e superiores, gerando uma gama de sintomas os quais podem apresentar-se com uma variabilidade clínica enorme, variando desde uma fraqueza com hipotonia muscular, flacidez, atrofia, perda dos reflexos osteotendíneos, fasciculações (movimentos involuntários espasmódicos dos músculos, parecidos com quando o olho fica pulando de estresse, mas de forma mais generalizada) – os quais são os sintomas do acometimento do neurônio motor no sistema nervoso periférico (corno anterior da medula, raíz nervosa, plexo, nervo); até sintomas de hipertonia muscular, com rigidez muscular importante, espasmos, aumento dos reflexos osteotendíneos, clônus – sintomas de acometimento do neurônio motor no sistema nervoso central (cérebro e medula).
Os sintomas não vão se restringir, entretanto, à musculatura que estamos acostumados a pensar, mas também irão afetar os músculos menos lembrados, como a língua e laringe, afetando a deglutição, a voz e até mesmo a respiração.
O diagnóstico desta doença é feito através da avaliação clínica pormenorizada, associada a vários exames complementares, os quais são necessários, principalmente, para definir a ausência de outras patologias que podem se comportar como a Esclerose Lateral Amiotrófica, mas que possuem características e evolução muito diferentes – ou mesmo para definir outros fenótipos dentro do espectro das Doenças do Neurônio Motor, com prognósticos muitas vezes melhores.
A avaliação clínica, isoladamente, já é capaz de direcionar a investigação complementar de forma deliberada. A presença, em um homem, de ginecomastia, endocrinopatias (diabetes, tireoideopatias, etc) associado à fraqueza bulbar (da deglutição e fala) precocemente podem direcionar para o diagnóstico de Doença de Kennedy (a qual possui um prognóstico muito melhor). A presença de tireoideopatias, por si só, pode causar sinais e sintomas de doenças do neurônio motor. A avaliação para sinais de doenças em outros sítios do sistema nervoso central (não apenas a perda de força com as características já mencionadas, mas sinais como descoordenação motora, psicoses, tremores, etc) deve acender a suspeita para alguns erros inatos do metabolismo e outras doenças do SNC, por exemplo.
A Eletroneuromiografia é capaz de mudar o diagnóstico em determinados casos, quando encontramos doenças com sintomas muito semelhantes, mas com processos patológicos muito diferentes. Exemplos de tais doenças, falando inicialmente dos nervos, são a Polineuropatia Inflamatória Desmielinizante Crônica e a Neuropatia Motora Multifocal, duas doenças as quais podem ter uma clínica exatamente idêntica a um quadro de ELA, mas que possuem tratamento clínico muitas vezes curativo. Outra doença dos nervos que pode se apresentar com caráter semelhante é uma que muitas vezes nem mesmo precisa de tratamento, melhorando sozinha: a síndrome de Parsonage Turner. Não apenas doenças dos nervos, doenças dos músculos (miopatias como a miosite de corpos de inclusão e a polimiosite, por exemplo), são diagnósticos diferenciais importantes avaliados na eletroneuromiografia. Enfim, qualquer doença do sistema nervoso periférico que possa estar simulando a ELA, será investigada através da eletroneuromiografia.
Não podemos nos esquecer também das mielorradiculopatias, como por exemplo as mais comuns, de causa compressiva. Sim, leitor, um processo degenerativo nas articulações das vértebras cervicais pode simular uma ELA. Precisamos de ressonância magnética das colunas para descartar esses processos. Não apenas isso, precisamos de uma imagem da cervical em flexão, para não deixar passar batido um dos diagnósticos diferenciais menos conhecidos, a doença de Hirayama / atrofia monomélica, uma doença causada simplesmente por um “descolamento” da dura mater (a membrana que reveste a medula) a nível cervical.
Esse processo de investigação complementar é importantíssimo, uma vez que podemos mudar o diagnóstico do paciente, podendo encontrar condições muito mais simples de serem tratadas e com prognóstico muito melhor. Isso não quer dizer, entretanto, que devemos postergar o diagnóstico da doença. Sim, é uma doença neurodegenerativa progressiva, com sintomas altamente incapacitantes que evoluem de forma acelerada, mas o diagnóstico precoce, tendo-se descartado os demais diagnósticos diferenciais, é importantíssimo para instituirmos os tratamentos e cuidados necessários.
A ELA é um dos maiores desafios da medicina. O fato de já terem sido testadas mais de quinhentos tratamentos diferentes e nenhum ter sido capaz de interromper sua cascata de agressão e apoptose neuronal é uma informação realmente desanimadora para os médicos. Isso não quer dizer que não exista tratamento para ELA e os seus sintomas.
Primeiramente, temos que lembrar que o paciente é um ser humano, e não uma doença. Precisamos saber que todos os sintomas comuns, causadores de desconforto no paciente com ELA, possuem terapêuticas que ajudam e muito. Dores, câimbras, contraturas, rigidez muscular, sialorreia, constipação intestinal, fadiga, labilidade emocional, insônia, ansiedade, laringoespasmos… Para tudo existe alguma intervenção capaz de gerar mais conforto ao paciente.
Em segundo lugar, temos de reforçar o quão importantes são as terapias complementares como a fonoaudiologia, a fisioterapia motora, a fisioterapia respiratória, a nutrição; além do uso de dispositivos de auxílio e terapias assistivas, como a ventilação não invasiva, a gastrostomia, o uso de dispositivos assistivos para auxílio na comunicação…. Tudo isso é capaz de prolongar e muito não apenas a sobrevida do paciente, mas a qualidade da mesma.
Por último, vamos para a parte medicamentosa. Classicamente, temos o Riluzol, um modulador do glutamato (age reduzindo a excitotoxicidade) como terapia medicamentosa, capaz de prolongar a sobrevida do paciente em até 19 meses, atrasando a progressão da doença, deixando o paciente mais tempo livre do uso de suporte ventilatório. Temos também o Edaravone, um inibidor de radicais livres, o qual também demonstrou benefício na sobrevida e na qualidade da mesma quando iniciado precocemente.
Menos classicamente, apesar de termos diversas substâncias que não demonstraram benefícios em estudos ao longo dos anos previamente, estamos vendo uma emergência de terapêuticas utilizando-se associações de substâncias já estudadas previamente, objetivando atuação em diversas etapas da cascata de excitotoxicidade e apoptose celular. O exemplo mais claro destes é a associação do ácido tauroursodesoxicólico com o fenilbutirato, associação que conseguiu em estudos iniciais demonstrar benefício real no tratamento da ELA. Além da testagem com associações de substâncias, novos mecanismos para a administração das drogas estão sendo testados, objetivando maior presença dos mesmos no local onde ocorre a doença.
Mais atualmente ainda, seguindo-se a uma tendência que toda a medicina está seguindo, temos as terapias gênicas. A Atrofia Muscular Espinhal (AME) por exemplo, uma outra doença do neurônio motor, já têm terapias com eficácia comprovada e capazes de mudar de forma marcante a evolução natural da doença. Com a ELA já temos terapias gênicas também, como o Tofersen para a variante SOD1 da ELA – o qual foi liberado pela agência regulatória americana recentemente; e o Jacifusen para a variante FUS (ainda em fase experimental). Não vamos nos abater – vamos continuar lutando cada vez mais pelos nossos pacientes, com vistas a melhorar o tratamento cada vez mais!
Dr. Luis Marcos Ferreira Junior
neurologista da Unimed Araxá