“Você aí que correu pro gol pra chamar Neymar de menino e a moça de vagabunda, você está ajudando a difundir o que nós chamamos de cultura de estupro. Uma cultura que sempre culpa a vítima e que faz com que um grande número de mulheres não denuncie. Porque sabemos que o que está acontecendo com a moça que acusou Neymar acontece com todas as vítimas”, escreve Lola Aronovich, professora da Universidade Federal do Ceará – UFC, em artigo publicado no seu blog ‘Escreva Lola Escreva’, 03-06-2019.
Eis o artigo.
Estou um pouco sem tempo e nem ia escrever sobre o caso Neymar, mas depois de ver que um grupo de agentes de segurança pública está dizendo que ele deveria imitar o goleiro Bruno, e depois de um troll comentar “eu sabia que você não iria falar daquela vagabunda”, decidi arranjar um tempinho e escrever.
A esta altura todo mundo que não vive numa caverna sabe que, na sexta-feira, noticiou-se um boletim de ocorrência com uma denúncia de estupro contra Neymar. O caso aconteceu no dia 15 de maio, quando o staff do jogador pagou as despesas para que uma modelo brasileira se encontrasse com ele em Paris (ela voltou ao Brasil no dia 17).
Anteontem, o pai de Neymar foi recebido por Datena em seu programa de TV (Brasil Urgente). Disse que o sexo foi consentido e que houve uma tentativa de extorsão por parte de um advogado em nome da vítima. Datena, que foi acusado de assédio sexual por uma jornalista, chamou o jogador de 27 anos de “menino” (três vezes), “moleque” (quatro vezes), “jovenzinho” e “garoto” e, não preciso nem dizer, o defendeu.
O apresentador ainda se queixou que essas notícias de acusação têm muita repercussão, mas, “se você for considerado inocente lá na frente”, pouco se noticia. Dois pontinhos, antes de seguir em frente. Um, essas acusações têm tanta repercussão justamente por causa de programas sensacionalistas como o dele. Dois, um escroque que tem um programa em rede nacional há décadas reclamando que não tem espaço para repercutir sua “inocência” é muita cara de pau.
Para “provar” sua inocência, Neymar colocou as mensagens trocadas e as imagens sensuais que a moça mandou pra ele. Nem precisava! Pra grande maioria das pessoas que imediatamente inocentam o jogador e condenam a mulher, só o fato d’ela ter ido pra Paris se encontrar com ele num hotel já mostra que ela queria transar com ele. E, se ela queria, então não houve estupro, né? Essa gente provavelmente não acredita que existe estupro marital. E crê que uma prostituta não pode ser estuprada — afinal, ela vive de fazer sexo. É só o cara pagar que pode fazer o que quiser com ela!
Luciana Bugni lembrou que Neymar tem 119 milhões de seguidores, e que, entre eles, há inúmeras crianças. O vídeo que ele divulgou teve mais de 20 milhões de visualizações antes de ser removido. Além da exposição típica de pornografia da vingança — Neymar está sendo investigado pelo vazamento das fotos –, seu vídeo é bastante didático. Como diz Luciana, “Mostrar essas conversas parte da premissa machista de que a mulher que manda nudes é uma vagabunda. E, se mandou nudes, ‘merece ser comida’. […] E estimula o pensamento de que a mulher que demonstra desejos sexuais é uma piranha, mas o homem que faz isso é o comedor”.
Eu já fui essa pessoa que crê que, se uma mulher vai ao quarto de um cara à noite, é obviamente porque ela quer dar pra ele; logo, se houve sexo, foi consentido. Eu, que sou feminista assumida desde criança, achei a maior bobagem quando o Mike Tyson foi acusado de estupro, em 1991. Afinal, Desiree Washington, concorrente a Miss Black America, entrou porque quis no quarto de hotel de Tyson, então um jovem mito do boxe. Se ela entrou no quarto era porque queria transar, né? (felizmente, o júri não pensou como eu, e Tyson foi condenado a seis anos de prisão).
Como eu disse lá em cima, agentes de segurança pública estão compartilhando esta imagem num grupo, sugerindo que Neymar deveria tratar sua “Maria Chuteira” como o goleiro Bruno tratou a sua. Mas não é sério, claro, é só brincadeirinha, nós feministas é que não temos senso de humor quando não rimos de piadas sobre estupro e feminicídio. Depois o pessoal estranha por que uma mulher não denuncia a violência contra ela. Vai denunciar pra quem? Pro agente de segurança pública que “brinca” com o caso de uma mulher que foi assassinada e cujo corpo foi devorado por cachorros?
Um blog do MBL (não vou por o link aqui, não dou ibope pra reaças) estampou que você precisa apoiar Neymar nessa “treta ridícula”. O blog dá o nome completo da vítima e diz que mulheres acusam homens famosos injustamente de estupro para se promoverem. Assim, “criminalizam a masculinidade” (note que quem associa masculinidade a estupronão sou eu, uma feminista — é um misógino). E conclui que “Neymar foi corajoso em expor sua intimidade para defender sua honra”. Nossa, que coragem a do “garoto”! Expor mensagens em que uma mulher diz que quer transar com ele!
Não entendi bem de onde deduzem que a moça que acusou Neymar quer a fama. Ela foi à polícia denunciar. Não apareceu em programa de TV. Não divulgou vídeo na internet. Não é ela que está divulgando seu nome. Pelo contrário, o caso corre em segredo de justiça. Quem está divulgando nome e fotos da moça é a trupe que defende o jogador. E ele mesmo. E Neymar, que pagou R$ 8 milhões num acordo com a Receita Federal(não é verdade que o governo Temer perdoou uma dívida de 200 milhões do jogador, mas é verdade que Neymar sonegou impostos, assim como vários outros atletas), não é qualquer um. Ele tem muito poder, muita fama.
Outra coisinha: se a mulher quisesse mesmo armar pro pobre menino Neymar, teria deixado um monte de mensagens “comprometedoras”, antes e depois do ato?
Segundo o Uol Esporte apurou, a moça entregou à polícia um dossiê com imagens e documentos que não constam no BO. Quatro fontes que tiveram acesso às imagens dizem que o jogador foi agressivo e estava alterado antes do suposto estupro.
A moça realizou exames no dia 21 de maio, e o laudo médico aponta “hematomas, problemas gástricos, perda de peso e sintomas de stress pós-traumático”. A reportagem do Uol viu e verificou as imagens anexadas no laudo (feito por um profissional de um hospital de renome), e constatou que há “hematomas grandes e escuros na região das nádegas e das pernas”.
Agora o pai de Neymar já mudou um pouco a versão. Disse que Neymar viu que o celular da moça estava de pé, “como se estivesse carregando. Ele viu que estava filmando e aí pediu para ela ir embora. Ele emitiu a passagem de volta dela. O Neymar até tenta filmar, tenta gravar, mas ele erra. Coloca no bolso e não consegue”. Bem confusa essa versão, não?
Porém, apesar dos indícios de que houve estupro sim, muita gente (mulheres inclusive, até feministas) acham que as mensagens que a mulher mandou pro jogador já são provas incontestáveis de que o sexo foi consensual.
É uma coisa assustadora, mas boa parte das mulheres transa com o mesmo cara depois de ser estuprada. Há muitos casos de mulheres que são estupradas e se encontram com o sujeito outra vez, e são estupradas de novo. Quem não entende como isso é frequente deve pensar que estupro só é cometido pelo total estranho numa rua deserta à noite. 70% dos estupros são cometidos por conhecidos da vítima. Na maior parte das vezes a vítima não corta contato com o marido, namorado, chefe, pai, tio, amigo etc que a estuprou. É até um mecanismo de defesa: ela transa com ele novamente para tentar se convencer que não foi estupro.
No excelente Eu Nem Imaginava que era Estupro, de Robin Warshaw, um livro publicado em 1988, baseado numa pesquisa feita pela revista Ms. em 32 campi dos EUAcom 6.100 estudantes universitários, homens e mulheres, revelou números aterradores.
Se as mulheres fossem apenas atacadas por um homem estranho numa rua escura à noite, reconheceriam aquilo como estupro. Mas quando é por um conhecido, fica mais confuso. Portanto, uma das primeiras reações das vítimas é negação (“não, eu não fui estuprada“).
A segunda é dissociação (a vítima se afasta psicologicamente, se vê à distância. Na ótima série Big Little Lies, uma mulher que é estuprada se imagina assistindo à cena do banheiro. Ela deixa seu corpo).
A terceira reação é a auto-acusação (a vítima sente-se culpada).
A quarta reação: ignorar a “voz interior”. Todxs nós temos instintos e intuições. Talvez mulheres mais que homens, por uma questão de sobrevivência. Mas muitas vezes ignoramos esses instintos (recomendo o livro Virtudes do Medo, de Gavin de Becker, especialista em segurança).
Quinta reação: não se defender. Somos educadas para não fazer escândalo. E muitas vezes não nos defendemos pelo medo de sermos ainda mais machucadas fisicamente. Além de homens costumarem ser mais fortes, altos e pesados, eles aprendem a brigar desde cedo. Mulheres não.
Sexta reação: não denunciar. Não preciso nem explicar isso. Todas nós conhecemos mulheres que já foram agredidas, estupradas, espancadas, e não levaram as acusações adiante, por uma série de motivos.
Sétima reação: tornar-se uma vítima novamente. Um dos números mais perturbadores da pesquisa explicada por Warshaw é que 42% das mulheres que foram estupradas disseram que fizeram sexo de novo como o estuprador. Como não viram o que aconteceu como estupro, tenderam a pensar “É paranoia minha”, “Eu o entendi mal”, “Vou dar uma segunda chance”. Há também um outro dado terrível: 41% das mulheres estupradas acham que serão estupradas novamente.
E aí: deixa de ser estupro porque a mulher se encontra com o cara de novo? Deixa de ser estupro porque a mulher escreveu numa mensagem que queria vê-lo outra vez? Deixa de ser estupro porque a mulher pediu pra que ele trouxesse um presente para o filho dela?
A moça que acusa Neymar pode estar mentindo? Pode (as imagens dos hematomas do laudo médico desfavorecem esta versão). E, se ela fez acusação falsa de estupro, pode ser presa por isso. Ela pode ter tentado extorquir Neymar? Pode.
Mas você aí que não viu a linha do impedimento e correu pro gol pra chamar Neymar de menino e a moça de vagabunda, você está ajudando a difundir o que nós chamamos de cultura de estupro. Uma cultura que sempre culpa a vítima e que faz com que um grande número de mulheres não denuncie. Porque sabemos que o que está acontecendo com a moça que acusou Neymar acontece com todas as vítimas (vale a pena ler este post que mostra como jogadores de futebol quase nunca são punidos pelos estupros que cometem. Ou você acha que quem tem fama e dinheiro “não precisa” estuprar?).
Fica a dica: em vez de se preocupar com as falsas acusações de estupro, que são mínimas, que tal se preocupar com o número baixíssimo de estupros que são denunciados, julgados, e acabam em condenação? E, mais uma vez, pare de atacar a vítima.
Mulheres unidas contra o machismo e a cultura do estupro
Jornal A Voz de Araxá – Jornal do Povo!