Com o regime de urgência aprovado nesta quarta-feira (13), o projeto de lei que equipara o aborto ao crime de homicídio, mesmo em situações previstas na legislação atual, pode ser votado diretamente em plenário na Câmara dos Deputados, sem a necessidade de passar por comissões.
A advogada Letícia Ueda Valle, do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, falou sobre o assunto nesta quinta-feira (13) no jornal Central do Brasil. O projeto ficou conhecido como PL da Gravidez Infantil por atingir, principalmente, crianças vítimas de estupro, que podem ficar proibidas de realizar o aborto depois de 22 semanas de gestação.
Letícia expõe os diversos problemas para a infância caso o projeto avance e mude artigos do Código Penal. A proposta prevê que a pena para a vítima do estuprador que abortar pode ser maior que a prevista para um condenado pelo abuso sexual. O aborto igualado ao crime de homicídio simples, conforme o texto da proposta, prevê pena de 6 a 20 anos de prisão.
Assista no vídeo acima e leia abaixo a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: Esse projeto de lei está sendo chamado por ativistas pelo direito ao Aborto Legal de ‘PL da Gravidez Infantil’. Por quê?
Letícia Ueda Vella: É chamado de PL da Gravidez Infantil porque afeta, majoritariamente, crianças vítimas de violência sexual. Quando a gente fala sobre interrupção da gestação legalmente prevista em idades gestacionais acima de 22 semanas, a gente sabe que aconteceu alguma coisa na rota dessa pessoa para que ela não conseguisse acessar o procedimento em momento anterior. As meninas são majoritariamente afetadas por isso porque, por vezes, a identificação da prática da violência sexual não é tão simples. E não se imagina tão facilmente que uma criança vai estar grávida.
Os sintomas e até mesmo o crescimento um pouco da barriga nem sempre é avaliado pela família e pelo próprio desconhecimento da menina sobre o próprio corpo. Descobre-se tardiamente por conta dessa dificuldade de identificar e, então, caso o PL seja aprovado com o conteúdo que hoje ele tem, essa menina chega ao serviço de saúde e seria obrigada a prosseguir com a gestação.
A gente sabe que os efeitos de uma gestação na infância, de uma maternidade na infância, são extremamente nefastos. A gente fala verdadeiramente da perda dessas infâncias, porque existe um enorme impacto na saúde mental e no índice de evasão escolar. Existe uma verdadeira interrupção do sonho e da vida dessas meninas.
Também chama a atenção o fato de as penas para a mulher que realizar o aborto poderem superar a pena dada para estuprador. O que isso revela sobre os direitos das mulheres no Brasil? Esse PL é uma forma de dificultar o aborto que já é previsto por lei?
Com certeza. Não há dúvida de que o PL foi editado justamente com o objetivo de estabelecer maiores barreiras a um direito que está previsto na legislação desde 1940. Então, veja, desde 1940, esse direito está garantido e agora o que se volta é o desejo de se impor barreiras de acesso a esse procedimento, que hoje no Brasil já é bastante dificultado.
Se a gente está falando de uma mulher, de uma menina que não consegue acessar o procedimento e chega num posto de saúde, chega na delegacia, depois da 22ª semana de gestação, a gente está falando de um sistema que não conseguiu acolher um caso de violência sexual antecipadamente. Então, a gente está falando de uma falha do Estado, de uma falha da nossa política pública.
E aí a gente pune essas meninas, pune essas mulheres e impõe a elas não só a impossibilidade de interromper a gestação. Para as meninas, interrompendo a infância delas. Para mulheres vítimas de violência sexual, também interrompendo seus futuros, impondo um sofrimento que, até por órgãos internacionais, já foi classificado como tortura e coloca, enfim, uma barreira adicional, verdadeiramente impedindo que esse procedimento seja realizado.
O autor da proposta, Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), afirmou que a bancada evangélica vê isso como um teste para ver se o presidente Lula vai vetar o projeto. Isso porque o presidente tinha declarado em campanha ser contra o aborto. É uma queda de braço entre governo e os evangélicos? Qual a força desse setor na aprovação dessa lei?
Evidentemente que a gente sabe por diversos motivos de que há uma disputa e uma queda de braço, não só entre Executivo e Legislativo, mas também entre poderes Judiciário e Legislativo. Tendo como um dos objetivos e pauta centrais a disputa sobre os direitos das mulheres, que estão sempre sendo negociados na mesa quando a gente está pensando sobre esse seu pesamento.
Então, eu vejo como uma espécie de queda de braço, avalio que o governo Lula vai se posicionar. E a gente espera enquanto movimento feminista, movimento de mulheres e pessoas que acreditam na garantia de defesa de direitos de mulheres e meninas, que [se posicione] na linha do que seus ministérios já se posicionaram: de que esse projeto de lei seria um verdadeiro absurdo e que, em realidade, ele só impediria um direito que está desde 1940 na lei, impondo e expondo mulheres e meninas à tortura.
É certo que a bancada evangélica tem um peso muito grande ao votar esses projetos, mas isso não significa que, necessariamente, toda e qualquer pessoa que exerce a religiosidade a partir desse lugar, é contrária à realização do procedimento ou tem posturas que são contrárias ao exercício de direitos das mulheres. A bem da verdade é que a gente tem uma bancada extremista que defende valores da extrema-direita e que ataca direitos das mulheres e, especialmente, o aborto como um ponto central.
Existe também a preocupação de que esse projeto de lei prejudique mulheres que sofram aborto espontâneo depois das 22 semanas de gestação. Isso é uma possibilidade?
Certamente, o que a gente entende é que a criminalização do aborto tem enormes efeitos no reforço ao estigma. A gente diz que ela coloca a prática ou a realização do aborto ou, então, o próprio aborto espontâneo num lugar da ilegalidade. E isso impacta diretamente o acesso a um serviço público de saúde quando, na verdade, só acontece dentro de um caso espontâneo.
Quando a gente aumenta a pena, o receio desses profissionais que estão dentro dos serviços de saúde também se eleva de fazer um atendimento. A gente sabe que hoje a maior parte das mulheres que é processada pela realização de um aborto é denunciada por profissionais da saúde que rompem com o sigilo médico profissional: uma realidade em que o serviço de saúde já não é necessariamente e nem sempre é um lugar de acolhimento.
Com a elevação do estigma, isso vai se tornando cada vez mais difícil. Então, a gente sabe que o aborto, não só o aborto inseguro, mas uma das causas de mortalidade materna é também que as mulheres recebem atendimento tardio. E a gente tem um caso emblemático de falta de atendimento em saúde materna que já foi julgado até pelo Comitê da ONU, o Comitê de Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres [Cedaw, na sigla em inglês], que é o caso Alyne Pimentel. Em que uma mulher busca, num caso de hemorragia, o sistema de saúde, não consegue atendimento e vai a óbito.
Essa não é uma realidade apenas da Alyne. A gente sabe que essa é uma realidade de milhares de mulheres no Brasil. Isso, com certeza, vai ser reforçado caso a gente eleve a pena, aumente o estigma e dificulte, coloque os profissionais de saúde cada vez mais amedrontados e as mulheres e meninas cada vez mais amedrontadas de buscarem ajuda. Com medo de serem criminalizadas por um aborto espontâneo que pode ser, inclusive, de uma gestação desejada. Ela pode estar em sofrimento por isso.
Jornal A Voz de Araxá!
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